MANIFESTAÇÃO
à Sociedade, ao Congresso
Nacional e ao governo referente ao Projeto Lei n. 6.840/2013, que propõe a reformulação do Ensino
Médio
Em apoio À PETIÇÃO PÚBLICA
Há tempo vimos acompanhando o debate da “Comissão Especial destinada a
promover estudos e proposições para a reformulação do Ensino Médio” (CEENSI), da
Câmara dos Deputados, que deu origem ao atual Projeto de Lei n. 6840/2013. Na
verdade, uma nova mudança deste nível de ensino, que nas últimas décadas foi
sendo retalhado, afastando-se cada vez mais de sua concepção de educação
básica, condição imprescindível à autonomia política e econômica da atual e
futuras gerações de jovens.
Como membros da sociedade civil,
acompanhamos as idas e vindas, a fragmentação e as emendas que vêm sendo feitas
à LDB (Lei n. 9.394/96), lei que nasceu fragmentada, mas salvaguardando algumas
coisas fundamentais como a Educação Básica (com as etapas da Educação Infantil
e dos Ensinos Fundamental e Médio).
Queremos aqui registrar que o PL faz retroagir a educação de jovens e adultos,
especialmente os das classes populares, aos anos 1940, bem como revoga o conceito
de Educação Básica como direito social e subjetivo, consagrado na Constituição
Federal (Art. 205) e na LDB (Art. 22). Como indicativo das várias análises que
se vem fazendo, transcrevemos o artigo que clarifica a gravidade do PL n.
6840/2013:
Art. 205 CF - A educação, direito
de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 22 LDB 9394/96 - A educação
básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação
comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e no prosseguimento de estudos.
Lamentamos também o constrangimento aos projetos levados adiante pelas Profas.
Dras. Jacqueline Moll e Sandra Garcia que, há mais de uma década, vêm lutando
nas instâncias governamentais (estaduais e federal), em diálogo com
instituições científicas, movimentos sociais e culturais, pela Educação
Básica (Infantil, Fundamental, Média; Educação Profissional e EJA).
Uma análise inicial do Projeto de
Lei CEENSI evidencia que além de promover uma distorção legal entre a
Constituição Federal e a atual LDB, ele significa um retrocesso na
democratização da educação brasileira. Nos termos específicos, o PL n.
6840/2013 visa, basicamente, a alterar os artigos 24 e 36 da LDB 9394/96 e, em
síntese, as proposições presentes no referido Relatório dizem respeito
diretamente a mudanças na organização pedagógica e curricular do ensino
médio que aparentam favorecer a escolarização ampla da população, mas têm
implicações sérias no sentido contrário. O PL, se aprovado, causará grande
prejuízo para o desenvolvimento do Ensino Médio. Por esta razão, pela
complexidade do tema, particularmente, do ponto de vista da universalização e
democratização da Educação Básica no país, é necessário um aprofundamento da
discussão de seu conteúdo.
Entre as alterações previstas
encontra-se a proposta de diversificação no último ano do ensino médio com
ênfase em ciências da natureza, ênfase
em ciências humanas e na formação profissional. Esta proposição, ao retornar
com os ramos de ensino, remonta à Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942,
conhecida como Reforma Capanema, em que este ensino foi definido em dois
ciclos, sendo o segundo, com duração de três anos (o que corresponderia à
duração do ensino médio hoje), dividido em dois cursos, o clássico e o
científico. O primeiro, voltado para a formação intelectual, o estudo da
filosofia e das letras e o segundo, para o estudo das ciências. Vê-se, assim, a
fragmentação dentro do próprio ramo propedêutico, já que a formação
profissional, nesta época, era estruturalmente paralela, independente em
relação à formação propedêutica e impedia a continuidade de estudos de nível
superior.
Dando resposta às revindicações
da sociedade civil pela equivalência dos cursos propedêuticos e profissionais
de nível médio para a continuidade de estudos em nível superior, primeiro,
através das Leis de Equivalência, no decorrer dos anos 1950, e depois,
pela LDB n. 4.024/61, tendeu-se a superar tal fragmentação, ao considerar “os
cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino
primário e pré-primário” (artigo 34) como ensino médio. No entanto, a Lei n.
5.692/71 começou obrigando que todo o 1º. e 2º. Graus fossem de formação
profissional, obrigatoriedade que somente foi extinta em 1982, no setor privado
pelo desinteresse em profissionalizar, e no setor público pela carência de
meios, pela Lei n. 7.044.
Consolidaram-se, assim mesmo,
dois ramos diferenciados do 2º. Grau – propedêutico e técnico
profissionalizante – os quais, mesmo sendo formalmente equivalentes para fins
de prosseguimento dos estudos, contribuíram para acirrar a dualidade
educacional brasileira neste nível de ensino.
A Lei n. 9.394/96 promoveu um
salto qualitativo da concepção de ensino médio, ao incorporá-lo como última
etapa da Educação Básica, juntamente com os ensinos Infantil e Fundamental.
Mais ainda, a definição da finalidade da Educação Básica – portanto, também do
Ensino Médio – de “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir
no trabalho e no prosseguimento de estudos” (artigo 22), não deixa dúvidas
sobre o caráter unitário do ensino médio, numa relação orgânica com as
etapas anteriores da educação básica. Vimos que o Decreto n. 2.208/97
tentou restaurar a dualidade entre a formação propedêutica e a profissional,
tornando este independente da educação escolar – tal como era no contexto da
Reforma Capanema – ainda que tivesse como pré-requisito para o estudante estar
cursando ou ter concluído o Ensino Médio.
A restauração da perspectiva
unitária do Ensino Médio após a reforma de FHC esteve no reconhecimento da
possibilidade de este preparar o estudante para o exercício de profissões
técnicas, mas sob a condição de atender, necessariamente, a sua finalidade de
formação básica. A concepção de Ensino Médio Integrado que se procurou
desenvolver e difundir pelos sistemas de ensino após a publicação do Decreto n.
5.154/2004 visava dar materialidade a este pressuposto.
O PL que agora entra em cena
parece proporcionar flexibilidade e diversidade ao Ensino Médio, mas representa
o maior retrocesso da história recente das políticas educacionais no Brasil.
Ele ignora quase um século de debates, disputas e superações, refundando a
fragmentação e a dualidade desse ensino médio, chegando até mesmo a comprometer
a sua concepção e finalidade como etapa da Educação Básica. Além de afrontar
contundentemente os fundamentos ético-políticos e pedagógicos que conferem esse
atributo ao Ensino Médio, a mudança curricular com ênfases em uma ou outra área
ou na educação profissional contraria não só a LDB, face ao artigo 22 aqui já
referido, mas, antes, a Constituição Federal em seu artigo 205.
Ambos os dispositivos legais
asseguram o desenvolvimento pleno do educando e a formação comum como
direito. A O PL fere esta formulação, mesmo havendo base nacional comum,
pois a obrigatoriedade de se fazer alguma opção no terceiro ano estabelece uma
diferenciação formativa no Ensino Médio e, portanto, na Educação Básica,
rompendo com o princípio constitucional da igualdade de acesso aos bens
culturais produzidos pela humanidade com vistas à formação integral de todo e
cada cidadão.
O PL demonstra imediatamente uma
dificuldade de situar todo o esforço da sociedade no desenvolvimento da
formação integral para todos os estudantes do ensino médio e na integração da
formação geral com a formação profissional. Ademais, a opção da
profissionalização no 3º ano do ensino médio contraria a forma de articulação
integrada prevista na própria LDB (e não alterada pelo projeto de lei)
estabelecendo mais uma contradição legal.
Cabe lembrar que a legislação
brasileira é bastante flexível para a organização curricular e a autonomia para
os projetos pedagógicos das unidades escolares e que a proposição de formato
obrigatório diminuiria a flexibilidade que anuncia. Há uma perda de liberdade
de organização curricular e autonomia das escolas e das redes de ensino. Sua
maior consequência seria “naturalizar” o reducionismo curricular oferecido para
determinados segmentos da população (os mesmos que muito recentemente
conquistaram o acesso ao ensino médio nas escolas públicas estaduais).
As grandes questões e
dificuldades do Ensino Médio ficam, então, ainda mais distantes de serem
superadas, pois elas pressuporiam uma política pública de longo prazo e protegida
de mudanças conjunturais que muitas vezes representam retrocessos para as
conquistas realizadas. Entretanto a questão mais importante para o
desenvolvimento de um Ensino Médio de interesse da sociedade brasileira não se
encontra somente nas decisões políticas governamentais ou na definição de um
marco legal “ideal” (como se fosse possível), mas principalmente, na capacidade
de organização e comprometimento da sociedade em geral e, em especial, dos
movimentos sociais na luta pelo direito de um ensino médio de qualidade para
todos.
Pela gravidade das consequências
explícitas em uma reforma desta natureza, que não só nega o direito social e
subjetivo do ensino médio como educação básica à geração atual e a futuras
gerações de jovens, mas naturaliza a dualidade e dentro dela a
diferenciação de classes e grupos sociais nós, instituições científicas,
pesquisadores em educação, movimentos sociais e culturais e demais
profissionais que lutam por uma sociedade justa e com vida digna para
solicitamos que o MEC não adira ao mesmo e o Congresso Nacional o não
aprove.
Assinam esta MANIFESTAÇÃO e solicitam apoio à
petição pública anexa a esta mensagem,
Grupo
THESE – Projetos Integrados de Pesquisas em Trabalho, História, Educação e Saúde
(Uff-Uerj-EPSJV/Fiocruz), coordenado por
Gaudêncio
Frigotto (UERJ) e Eveline Algebaile (UERJ)
Maria
Ciavatta (UFF) e Zuleide Simas da Silveira (UFF)
Marise
Ramos (EPSJV/Fiocruz) e Julio César França Lima (EPSJV/Fiocruz)
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