O Espaço de diálogo sobre o Ensino Médio Público

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PEIXE NA MANTEIGA OU SOBRE TRABALHADORES E EDUCAÇÃO?





Doriedson S. Rodrigues[1]


É sábado. O sol convida a gente pra sentar na praia; e a praia chama a gente pra conversar com os amigos, intimar-se com a família e almoçar tucunaré na manteiga com um fervente arroz ao alho e óleo. O açaí está de licença médica.
(...)
É almoço. A conversa diminui. Garfos, facas e colheres ditam o tom. Bocas se abrem ao peixe.
(...)
Finda o almoço. Satisfação! So-no-lên-cia. Uma quietude de repente me reporta para a escola e trabalhadores, e cá já me vejo ao longe comprometidamente com os botões, enquanto os meninos brincam de bola e o pessoal vai se ajeitando num Café-Brasil-Aldeia[2]. Lembro uma aula sobre a segunda metade do século XX. Recordo a temática: democratização do ensino no Brasil.
Se não me foge a memória, estamos, nesse período, sob a perspectiva do paradigma urbano em detrimento do rural. As cidades, impulsionadas por pretenso progresso industrial – unilateral, porque pensado sob a ótica do capital –, veem-se envolvidas por uma imensa leva de trabalhadores, oriundos do meio rural, povoando as periferias das cidades, provocando entre a classe dirigente do país o receio de a ordem não ser mantida.

(Decisão)
Foi necessário abrir os portões da escola para esse filho de trabalhador, principalmente quando consideramos o efeito durkheimiano pretendido para a escola: conter as paixões, as desordens que possam afetar o todo social.
            Deixo de pensar nessas coisas por um instante, afinal é sábado. E é praia!
Ledo engano. Tem certas horas que um pensamento puxa outro, como os fios de um tecido.
Vou novamente no embalo do pensar.
Não se tratou, contudo, de uma abertura pensada para o bem do trabalhador. A sociedade industrializava-se, o capital precisava gerar mais lucro, era preciso trabalhadores com condições mais amplas de operar as máquinas; com condições de aumentar a produção. De um lado, buscava-se a diminuição das tensões sociais, a partir da divulgação da educação como instrumento de ascensão social – estude e poderás mudar de vida!. De outro, garantia-se ao capital mão de obra especializada, com o mínimo necessário para operar as máquinas – saber contar, ler e escrever, pelo menos o nome.
(Música Nacional: a gente não quer somente isto: saber contar, ler e escrever, pelo menos o nome)
(...)
            O problema é que essa abertura não foi acompanhada por uma transformação na estrutura educacional que se tinha até então.
(Parei de pensar sobre isso. Bebo coco. Respiro profundamente)
(...)
Abertura.,.transformação...Estrutura Educacional ... Dermeval Saviani: etimologicamente escola significava, no grego, o lugar do ócio, do tempo livre.
(Conclusão do dito antes)
Ora, no modo de produção capitalista esse tempo livre nunca esteve sob a perspectiva dos trabalhadores. Condicionados historicamente a garantir o aumento do capital, restava tal liberdade aos donos dos meios de produção, que podiam frequentar a escola, porque outros lhes asseguravam a sempre sobrevivência/existência. Nos moldes marxistas, a escola foi criada, então, para atender ao burguês, sendo, não raras vezes, uma extensão da casa desse homem e mulher burgueses. Assim, a escola acabava, para o burguês, sendo igual a sucesso, porque conteúdos, objetivos, desenho curricular, linguagem, dentre outros fatores, eram embasados pelo que essa elite vivia e legitimava como cruciais para continuar mantendo seu status quo.
            (Meus olhos olham bela dona passando ao longe. É bela dona de fato e de direito que meus olhos olham, como a fogosa Antônia, do Laredo[3]. Meus olhos lembram Pessoa[4] – “o poeta é um fingidor” – a cantar para o leitor atento)
            (Interregno)      
Todavia, quando a massa de trabalhadores passou a ser incorporada no ambiente escolar, a razão acesso e sucesso não se fez materializada na mesma proporção, haja vista que os mecanismos de existência da escola, como os saberes, os procedimentos de ensino, continuaram a ser os que tão bem expressavam o ideário burguês.
(Pausa para um piquiá/pequiá[5] com farinha[6], que contemplo ser comido, restando-me somente o desejo (Me disseram que ele ataca o fígado!))
(Sem piquiá nem pequiá pra nós, voltam os pensamentos)
Ideário burguês ... Houve então uma democratização do ensino, enquanto acesso, mas sem uma efetiva democratização do espaço escolar, uma vez que o capital cultural por ele almejado e veiculado não era o mesmo construído materialmente pela classe trabalhadora. O resultado só poderia ser índices altos de evasão e repetência, consubstanciando argumentos para a privatização do ensino, abrindo as portas para o mercado tomar a educação como mais um serviço à disposição daqueles que podem pagar ou serem subsidiados pelo Estado (eis a relação público-privado).
(Discurso militante)
Ora, a escola antes era advogada como lugar do sucesso porque os que nela se encontravam detinham o capital cultural por ela exigido. Com a democratização, passou-se a ter uma relação assimétrica entre aprendizes e escola, porque detentores de capitais distintos.
(Indagações)
Estaria então a solução para o equilíbrio escola-sucesso-ensino em os aprendizes renegarem seus capitais culturais, por meio de uma educação compensatória, assumindo totalmente os saberes hegemônicos? Ou lutarem para se verem reconhecidos os saberes dos trabalhadores como elementos importantes para firmação/afirmação de identidade e classe, consubstanciando fatores cruciais para se apropriar de saberes mais universais, porque importantes também para a disputa por um projeto hegemônico distinto do capital?
(Nota nada conclusiva)
Parece-me que, numa perspectiva da emancipação humana, a solução encontra-se na segunda alternativa. Parece-me.
(...)
Volto à praia. Minha filha me quer a brincar na PRAI-A/PRA-IA lusitana de um Camões, duns “Lusíadas”, não, duns “cametauaras[7]”. Os meninos estão na bola. Vou com ela brincar na areia, fazer castelos, divertir-me com elas e eles, minhas meninas (a mulher e a pequenina) e meus meninos (o goleiro e o mãnú) e os amigos. Noutro momento hão de me voltar os pensamentos, a segunda alternativa, os saberes, a emancipação, a hegemonia, a escola, os trabalhadores, o ensino. Mas ficam para outro momento os pensamentos.



[1] Doutor em Educação (UFPA). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFPA, bem como do Campus Universitário do Tocantins/Cametá – UFPA. E-mail: doriedson@ufpa.br.
[2] Brasil é o nome de um bar-restaurante que fica na Praia da Aldeia, em Cametá-Pará. Hoje, o nome do bar é o nome do dono do bar, onde se toma também um café.
[3] Trata-se do escritor paraense Salomão Laredo.
[4] Trata-se do escritor Fernando Pessoa.
[5] Trata-se de fruto presente também na Amazônia paraense.
[6] Trata-se da farinha obtida a partir da mandioca.
[7] Entendemos por cametauaras os sujeitos que nasceram em Cametá, município do nordeste paraense.

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