Ter, 21 de Outubro de 2008 10:52
Marcello Musto:
Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente
relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do
papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das
ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela
nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente
interesse.
Em 2003, a revista
francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título
provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em
uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem
eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores
votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o
primeiro na categoria de “relevância atual”.
Em 2005, o
semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como
título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os
ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o
maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali,
recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas,
mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro
ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal George Soros a
seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele
diz”.
Ainda que seja
débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É
possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e
intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande
clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir
no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?
Eric Hobsbawm: Há
um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo
capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia,
do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de
que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma
crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida
globalização do livre-mercado.
Marx previu a
natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da
“sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os
capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado,
fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais
conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia
capitalista na qual eles operam.
A maioria da
esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada
pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico
Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à
ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e
econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin.
Os assim chamados
“novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão
lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus
membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso
sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o
socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”,
dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da
transformação social preconizada por Marx.
Devemos levar em
conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais
preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e
análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser
considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões
políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram
poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual
contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos
anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.
Marcello Musto: Ao
longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e
analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em
escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional
globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este
processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por
políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises
econômicas e injustiça social generalizada.
Na última década,
vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a
crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos
hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior
crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do
interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na
capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?
Eric Hobsbawm: Se
a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de
Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso
dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente
a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política
coerente.
Posto que, como
você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está
consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da
sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos
noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma
grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre
mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a
escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.
As pressões
políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno
de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos,
como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição
geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a
estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo.
É claro que
qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx
sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade –
incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do
desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas
auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar
que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal
havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que
qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.
Marcello Musto:
Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda
internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século
XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o
exame e a transformação da realidade atual?
Eric Hobsbawm:
Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em
que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada,
não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento
histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o
capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado
socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os
elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.
Considerando que
Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser
responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas”
foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos
objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade
sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar
plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior
força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.
No entanto, Marx
não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se
compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos,
autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real
do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza
do desenvolvimento capitalista.
Tampouco podemos
ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada,
coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de
construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”.
Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria
conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez
excessivamente ambicioso.
Por outro lado,
Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas
radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada.
A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível.
Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas
vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo
de globalização produzida pelo capitalismo.
Marcello Musto: Um
dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e
comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse”
são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto,
também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões
sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação
inacabada.
Por que, em sua
opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate
que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para
resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de
seu persistente interesse?
Eric Hobsbawm:
Desde o meu ponto de vista, os “Grundrisse” provocaram um impacto internacional
tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles
permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você
diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em
nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do
marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente
ser descartados.
Puderam, portanto,
ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o
alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser
acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e
oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente
porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram
considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu
prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the
Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto,
Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
Marcello Musto: No
prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar
o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o
momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos
pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de
Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”.
Além disso, para
destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem
análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de
Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a
produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do
potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais
circunstâncias.
Este é o único
texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro
comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse
texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua
riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse”
hoje?
Eric Hobsbawm: Não
há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham
tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos.
Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a
distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico
da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever
que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer
que certamente não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante
ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante
universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma
das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século
XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada.
Também é
importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido
sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o
século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o
mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx
permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas
que devemos enfrentar.
[Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano]
[Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio
Weissheimer]
Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É
presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New
School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se
a trilogia acerca do “longo século XIX”: “A Era da Revolução: Europa 1789-1848″
(1962); “A Era do Capital: 1848-1874″ (1975); “A Era do Império: 1875-1914
(1987) e o livro “A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994),
todos traduzidos em vários idiomas.
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